Woody Allen de Binóculo
Estava na sacada do décimo terceiro andar, admirando o horizonte de prédios. Era o início de um entardecer de domingo, mas não parecia que o sol iria embora tão rápido.
Fui ao meu armário, peguei o binóculo comprado recentemente na Amazon - enquanto ainda não vendem rifles de alta precisão - e comecei a vislumbrar detalhes daquele horizonte pela janela do quarto.
Depois de tentar enxergar mais distante do que as lentes poderiam oferecer, me detive num prédio que ficava duas ruas pra baixo de onde morava. Tinha visão de todos os andares. Passeei pelas varandas e janelas, observando os moradores que mal faziam ideia de que estavam sendo observados.
No segundo andar, pelo lado direito, uma sacada preenchida de samambaias, contava com duas cadeiras de madeira, posicionadas para admirar a rua logo a frente. Pela janela da cozinha, uma senhora falava com alguém, fora de minha visão, enquanto lidava com o vapor de algo que cozinhava. Parecia irritada. Desviou o olhar para fora, depois para o lado e, então, de volta para a panela. Será que falava sozinha? Talvez o marido tivesse falecido pouco tempo atrás e ela ainda não havia perdido o costume de falar com ele.
No quinto andar, pela porta de vidro sem cortinas da varanda, era possível ver um casal dançando lentamente na sala, com os corpos quase colados. Ele usava bermuda e estava sem camisa, as canelas com meias pretas terminavam em sapatos sociais que brilhavam de tão novos. Ela usava uma blusinha simples de cor neutra, shorts jeans curtos e, nos pés, tinha sapatos brancos de salto. Talvez estivessem ensaiando para a valsa do casamento que teriam em breve.
No nono andar, agora pelo lado esquerdo, vi uma TV ligada em algum filme e fiquei tentando adivinhar qual era, até ter a atenção chamada por uma moça que passou com a toalha enrolada no corpo. Acompanhei sua direção até a janela do quarto. Ela tirou a toalha e a vi nua. Como se despertasse para a possibilidade de um pervertido como eu, ela voltou a toalha na frente dos seios, foi até a janela e a fechou.
Mas foi no último andar que levei mais tempo observando, enquanto estava apoiado na base da minha janela indiscreta particular.
Duas lindas mulheres estavam de pé na varanda, segurando taças, olhando para o horizonte que aquele andar poderia lhes proporcionar. Uma tinha os cabelos curtos mais claros e a outra longos fios escuros. Minha mente pornográfica, frustrada pela moça do nono, imaginou as duas iniciando carícias e beijos, mas a realidade era só de conversas.
Conversavam e riam. Talvez estivessem relembrando algum causo que viveram juntas quando crianças ou falassem mal de alguma colega em comum do trabalho. Independentemente do que fosse, pareciam se divertir.
Então, algo pareceu chamar a atenção delas. A de cabelos longos, que batizei de Abela, entrou no apartamento enquanto a de cabelos curtos, que batizei de Camy, tomou mais um gole da taça.
Quando voltou, Abela trouxe um homem, o puxando pela mão. O homem, que batizei de Otário, cumprimentou Camy com um beijinho no rosto, não me deixando entender se já eram conhecidos.
Abela falou algo para Otário, ele respondeu e ela entrou novamente no apartamento. Enquanto Camy e Otário ficaram sozinhos, continuaram conversando, cada um em seu lugar. Abela voltou com uma terceira taça e entregou para o Otário. Os três brindaram e beberam.
Em determinado momento, quando Camy se distraiu com alguma notificação no celular, Abela e Otário se beijaram, mas sem me deixar entender se era um relacionamento de muitos anos ou o início de um namoro. Eles se acariciaram, com leves toques no rosto um do outro. Camy se voltou para eles e comentou alguma coisa, provavelmente relacionado ao que acabara de conferir no celular.
Minutos depois, Abela juntou as três taças vazias e retornou para o dentro do apartamento. Otário se aproximou de Camy e disse algo em seu ouvido. Camy olhou rapidamente para dentro do apartamento e depois retomou o olhar para Otário. Se beijaram.
Franzi o cenho, apertei as mãos no binóculo e me projetei levemente para frente, como se fosse conseguir aumentar o zoom daquela cena. Automaticamente, pensei numa ficção de infidelidade se formando através daquela realidade observada.
Otário se distanciou e retomou ao lugar em que estava. Abela voltou sorridente. Os três continuaram conversando por mais um tempo. Abela se aproximou de Otário e ficaram abraçados, trocando sorrisos e alternando o olhar entre si e Camy.
Em determinando momento, Abela entrou outra vez. Parecia que ainda falava com os dois da varanda, pois ambos ficaram de costas para mim, olhando para a direção do apartamento. Segundos depois, Camy tomou a frente, caminhando para dentro e Otário, logo antes de segui-la, passou a mão em sua bunda.
O sol, enfim, estava abandonando o dia e o interior daquele apartamento estava escuro. Mas não demorou para alguém acender a luz.
Otário sentou no sofá, Abela e Camy se entreolharam e trocaram sorrisos, ainda de pé. A infidelidade abriu espaço para a pornografia em minha mente, outra vez, até que
TÁ TÁRATÁ TÁ TÁ PA PO POU! Vai curíntia! Fiiiiiiiiuíí! Aeeee porra!
Com o susto, derrubei o binóculo. Perdi a atenção de tudo e fiquei apenas observando o objeto cair, torcendo para que não acertasse a cabeça de ninguém. Ele bateu no chão e algumas peças se espalharam, cada uma para um lado. Com batimentos acelerados e adrenalina no alto, demorei alguns segundos para retomar à observação anterior. Sem as lentes, não consegui enxergar mais nada do apartamento que voltou a ficar no escuro.
Corri para o elevador, pensando em desculpas que daria a alguém que tivesse ouvido o barulho alto e seco que o objeto fez ao cair. Mal pensei em justificativas de estar usando binóculo - sem passar o cordãozinho pelo pescoço, inclusive - da janela do meu quarto. De qualquer maneira, estar observando e catalogando pássaros, ou qualquer merda assim, não seria convincente para ninguém.
Entretanto, o futebol de domingo na Zona Leste era mais importante que um neurótico qualquer de binóculo. Recolhi o objeto com seus fragmentos e voltei ao elevador sem dar explicações a ninguém.
Enquanto subia, observei as lentes quebradas e imaginei que o Brasileirão seria um impeditivo para qualquer história de domingo à la Woody Allen, por aqui.