O Guru
O mochileiro chegou na aldeia, com o pressentimento de que sairia dali com mais um aprendizado, mais uma experiência e mais um propósito, assim como tinha sido em outros locais.
A imersão cultural da vez, contava com aldeões gentis, banquetes regados a frutas (oferecidos ao mochileiro de bom grado) e com a presença de um jovem guia local, nativo da aldeia, que iria acompanhá-lo e explicar como se dava a vida por ali.
Eis que, depois de percorrer boa parte da aldeia, o mochileiro foi convidado a conhecer o guru. O guia se encheu de orgulho ao mencioná-lo e enalteceu o discurso inteligente e cativante que o sujeito fazia diariamente.
Ao se aproximarem de um grupo, que fechava um círculo em volta do guru, o mochileiro ouviu um burburinho seguido de "oooh!" e aplausos. Ele se entusiasmou. Deveria ser, realmente, alguém interessante.
A roda de pessoas abriu um pequeno espaço para que o guia e o mochileiro pudessem se acomodar.
O mochileiro, ansioso pelas palavras que iria ouvir, se deparou com um velho baixo e simpático, vestindo roupas brancas e acessórios de madeira. Ficou em silêncio, dando o máximo de atenção que podia.
— Aquele que ri por último, ri melhor — disse o líder da aldeia.
Aplausos. Os aldeões ovacionaram o guru. O mochileiro olhou ao redor, com um sorriso tímido sem dentes. Ele não entendeu se a frase fora uma brincadeira.
O guru penteou o bigode branco com os dedos, esperou o silêncio se fazer ao redor, tomou fôlego e prosseguiu:
— O mais importante não é a vitória, mas evitar a derrota.
Os aldeões aplaudiram fervorosamente.
De maneira instintiva, o mochileiro pensou "ora, ora… temos um capitão óbvio por aqui", e riu sozinho.
Os aldeões continuaram suas ações de veneração. Alguns secavam lágrimas dos cantos dos olhos. Outros, se ajoelhavam em reverência.
O mochileiro olhou para o guia, que estava com os olhos marejados.
— Isso acontece com frequência, por aqui? — perguntou, em baixo tom.
— Sim! Ele é incrível, não é? — disse o guia.
O mochileiro não respondeu. Ele observou as pessoas mais de perto e percebeu que algumas usavam camisetas com o rosto do guru estampado. Outros possuíam pequenos chaveiros, num formato caricato da cabeça do guru.
Então, a graça da situação começou a diminuir.
— Muito custa o que é muito caro.
Mais aplausos. Mais "oooh!"s.
— É brincadeira, né? — falou o mochileiro.
— O quê? — questionou o guia.
— É sério que vocês acham isso interessante?
Um aldeão mais próximo, ouvindo a pergunta do mochileiro, colocou a mão em seu ombro.
— Algum problema, irmão?
O mochileiro olhou para o aldeão e para mais alguns que também lhe encaravam. Então, decidiu quebrar a regra que colocou a si mesmo de, pelo simples bom senso, não interferir, contrariar ou questionar (de nenhuma maneira) a cultura local que estivesse visitando.
— É que ele só está falando obviedades... — disse o mochileiro, levantando as mãos, querendo parecer inofensivo.
O restante dos aldeões, que ainda não haviam prestado atenção no mochileiro, passaram a encará-lo. Um silêncio se fez, por alguns segundos.
— Herege! — gritou uma mulher.
— Invejoso! — gritou outra.
Alguns aldeões se aproximaram do mochileiro, expressando revolta. Ele, por sua vez, olhou para o guia, buscando algum tipo de proteção. Porém, o guia também lhe direcionava um olhar mau.
— Calma aí — disse. — Eu só achei um pouco engraçado vocês se impressionarem com frases feitas.
— Frase feita!? — questionou um aldeão, ao mesmo tempo em que outro pronunciava “Herege!”, ao fundo. — Você está fazendo pouco caso do nosso Mestre, irmão!?
— Filho de peixe, peixinho é — disse o guru, numa forma de atacar o mochileiro e, de tabela, conseguir a atenção de volta para si.
De fato, os aldeões se voltaram para o guru e desfizeram-se das expressões revoltadas. Mais outros “oooh”s foram ouvidos. Alguém, mais distante, gritou “um salve ao Mestre!”.
O mochileiro, num misto de alívio e irritação, soltou uma risada sarcástica e disse:
— Se hoje fosse ontem, amanhã seria hoje.
Como se fossem zumbis, os corpos dos aldeões, outra vez, se voltaram para o mochileiro, expressando espanto.
— Viram como é? — disse o mochileiro, satisfeito. — Ele só fala esse tipo de coisa!
Todos abriram um sorriso. Alguém gritou “Mestre!” e, então, os aldeões voltaram a se aproximaram do mochileiro e começaram a tocá-lo.
— Ei! Ei! Não precisam encostar em mim! — disse o mochileiro. — Eu apenas quis exemplificar como ele só está falando obviedades.
O círculo de pessoas se fechou mais um pouco, em torno do mochileiro. Alguns aldeões começaram a puxar suas roupas. O guia, que era o aldeão mais próximo, segurava os seus pulsos.
— Mestre! — disse o guia, olhando nos olhos do mochileiro, cheio de emoção.
— O que vocês estão fazendo!? — questionou ele, com a voz trêmula.
— Mestre! — repetiu o guia, ignorando a pergunta.
A roda se fechou ainda mais, agora, o mochileiro mal podia se mexer.
— Me soltem!
Os aldeões disputavam espaço para tocar o mochileiro. Eles pareciam entorpecidos. Entre vários gritos de “Mestre!”, o mochileiro buscou alguma maneira de sair dali. Ao olhar para fora do círculo de pessoas que lhe rodeava, o mochileiro viu o guru. Seu semblante estava diferente, agora, ele parecia um homem comum.
O guru se desfez de suas roupas e acessórios, ficando nu, olhou ao redor e respirou fundo.
— Ei! — gritou o mochileiro. — Me ajude!
Entre os braços dos aldeões que lhe apertavam, o mochileiro conseguiu enxergar um leve sorriso do guru. O velho acenou com uma das mãos, em despedida, girou o corpo e começou a andar para longe.
— Ei! — gritou o mochileiro, novamente. — Ei!
O mochileiro foi perdendo a visão do guru, da aldeia e, aos poucos, da luz do dia. Enquanto sumia por dentre os abraços e apertos dos aldeões, ele ouvia algo como “Nosso mestre!” e também “Nós te veneramos”, até que uma aldeã disse, em seu ouvido:
— Nós nunca vamos te abandonar.
Obs.: Esse texto foi escrito a partir de uma dinâmica que fiz no Instagram, pedindo frases aleatórias que seriam aplicadas em pequenas ficções aqui no Substack. Dessa vez, a frase (Se hoje fosse ontem, amanhã seria hoje) foi enviada pelo meu amigo Gui.