O Duplo (1846)
Comecei a ler Dostoiévski em 2015, aos 21 anos, com o livro O Duplo, apesar de não ter sido o primeiro contato com o autor, que se deu através de um audiobook de Noites Brancas, disponível no YouTube. Se você considera que audiobook também é lido, então considere O Duplo como o meu segundo. De qualquer maneira, foi com este livro que considero meu ponto de partida com as obras do autor.
Não é difícil encontrar a informação de que O Duplo, além de ter sido o segundo livro de Dostoiévski, foi também uma história mal recebida pela crítica na época em que foi lançado, contrastando com a sua bem recebida estreia de Gente Pobre.
Talvez precisasse também de uma releitura, de minha parte, de Gente Pobre para ser justo, apesar de tê-lo lido, relativamente, há pouco tempo. Mas a minha recepção com ambos os livros é contrária ao que aconteceu na biografia do autor.
O Duplo me parece uma obra com a qualidade muito acima do que de Gente Pobre. Nela, Dostoiévski demonstra, de fato, a que veio, apresentando características de escrita que ficariam marcadas como suas ao longo da vida e para além dela.
Na primeira vez que li O Duplo (confesso que não me lembro se antes ou depois de assistir ao filme com Jesse Eisenberg, mas é provável que tenha sido depois), imaginei estar acompanhando a história de um cara que fica louco. Porém, com a releitura, quase 10 anos depois, eu entendi que, desde o começo da história, já estamos lidando com um homem louco.
Tudo bem que todos os personagens do livro acabam se portando de uma forma um tanto esquisita, por assim dizer, mas se colocarmos o protagonista Golyádkin em perspectiva com àqueles com quem o sujeito interage, fica evidente que seu comportamento e maneirismos (tipo repetir incessantemente o nome daqueles com quem conversa), evidenciam que algo dentro de sua cabeça já não bate bem.
Aqui, é importante um disclaimer: muito do comportamento dos personagens podem refletir, nada mais, do que o comportamento real daquela época, daquele país ou daquela forma de escrever ficção. Pois em todas as histórias do autor (ou de outros autores da época) podemos ver semelhanças em situações específicas, mas a leitura de tais obras nos dias de hoje, no mundo atual, pode distorcer nossa compreensão do que era padrão e do que estava fora dele.
Apesar de que Dostoiévski viria apresentar personagens que, volta e meia, mudam de opinião bruscamente ou que se ofendem facilmente com situações das quais não parecem trazer tanta ofensa, com o Sr. Golyádkin, tais características ressaltam a fragilidade de sua condição mental.
Logo no início, quando Golyádkin visita o médico, com quem ele anda se consultando, fica clara que a forma como o doutor lhe trata, reforçando perguntas e concordando quase que mecanicamente (para usar palavras aprendidas em romances russos), traz à tona o estereótipo de como pessoas sãs tratam pessoas loucas. Afinal, você nunca contraria um louco.
Com o desenvolvimento da história, onde vamos percebendo, cada vez mais, que o Sr. Golyádkin é alguém fora de convívio social comum, do qual ele gostaria de participar, vamos sentindo pena do sujeito de maneira constante.
É interessante construir a imagem que os demais personagens têm do protagonista, no decorrer das páginas, tendo em vista que nossa base de perspectiva é somente a partir da dele, ao imaginarmos que Golyádkin já se trata de alguém deixado de lado pelos seus conhecidos, justamente por já apresentar (não sabemos a quanto tempo) um estado mental fora de si.
E é corajoso como o autor consegue “brincar” com o fato de o Golyádkin segundo (o duplo de Golyádkin primeiro) realmente existir ou não. Essa dualidade de perspectivas, quando personagens secundários interagem com o primeiro e depois com o segundo, alimenta essa dinâmica de sanidade do protagonista, ao mesmo tempo que nos entretém pela narrativa, não deixando cair em morosidade.
O fato de Dostoiévski escolher não narrar cenas com descrição fotográfica (paralelo que eu faço com nosso Machado de Assis), e sim focando mais no desenvolvimento dos personagens através de seus diálogos (internos e externos), faz desse livro uma oportunidade perfeita para a exploração do que o tema propõe, ou seja, discutir o equilíbrio mental de um personagem e nos colocar a frente do embate entre a ficção e a realidade (dentro da ficção, claro) e nos deixar satisfeitos, embora lamentados pelo Sr. Golyádkin, ao comprovar de que a realidade sempre prevalece.