David Fincher demonstra conforto na direção desse filme, pois se trata daquilo que ele mais gosta de fazer ou, ao menos, daquilo que seus fãs mais gostam de vê-lo fazer: um thriller neo-noir sobre um personagem extremamente racional.
Claro que, como em todos os seus trabalhos, Fincher conta sempre com um roteiro competente. Neste, escrito por Andrew Kevin Walker (roteirista também de Seven), adaptado dos quadrinhos, criado por Alexis Nolent e Luc Jacamon, ele escolhe os melhores planos para apresentar as ações do protagonista.
Então, ao prestar atenção em como o diretor se utiliza da fotografia para contar uma história, algumas perguntas me vêm à mente, ao pensar na construção de uma cena, como “Em que momento cortar?”, “Qual plano utilizar para mostrar isso?”, “Quando usar travelling?” etc. E é nesta característica que Fincher faz tudo parecer fácil demais. Faz parecer que a melhor construção de cena possível foi, justamente, a que ele escolheu fazer.
O diretor é famoso por não economizar na quantidade de tomadas necessárias para encontrar exatamente o resultado que espera ao construir uma cena. Com isso em mente, outra questão levantada é: quantas cenas do protagonista se alongando, por exemplo, ficaram de fora da cena inicial, para que as do corte final fossem escolhidas?
Inclusive, a sequência inicial, pegando alguém desprevenido, pode ser tomada como tediosa ou arrastada, pois são longos minutos observando o assassino, vivido por Michael Fassbender, em poucas ações, apenas narrando sobre si mesmo e sobre suas filosofias de vida, ajudando o espectador, de tabela, a contextualizar o personagem que ali está.
Ao lado do montador Kirk Baxter, que já é parceiro de Fincher em vários filmes, o diretor estabelece clareza ao apresentar o personagem e a situação em que ele se encontra.
A mudança de planos, numa dinâmica um tanto acelerada de cortes, somado aos usos específicos de travelling, mantém o ritmo do filme equilibrado em contraposição à morosidade propositalmente retratada no primeiro ato.
Aliás, essa morosidade, serve também para “sentirmos na pele” o trabalho do assassino, para além do ato de matar alguém. É interessante o personagem dizer que “não há nada mais exaustivo do que não fazer nada”, pois é o que veremos ele fazer (ou não fazer) muitas vezes.
A rigor, ele não “não estaria fazendo algo”, afinal, um matador de aluguel ficar de vigília, esperando o alvo aparecer, ainda é fazer alguma coisa. De qualquer maneira, essa ociosidade, que poderia ser uma armadilha para deixar o filme arrastado ao longo da projeção, não acontece aqui.
Na locação inicial, o personagem está num escritório vazio, que parece estar em reforma, ou numa sala comercial que ninguém aluga há muito tempo. De qualquer maneira, o interessante a ser observado, é que se trata de um espaço bem limitado e que demanda criatividade do diretor para situar o espectador no ambiente sem parecer tedioso.
Embora, neste local, os cortes se utilizem muito de raccord para nos levar pelo olhar do assassino e, de tabela, disfarçar os cortes presentes na sequência, a alternância de planos não disfarçados é tão natural, que mal percebemos suas aplicações.
Essa atmosfera é bem complementada graças o voice over do protagonista, nos revelando seus pensamentos e seus olhares vidrados atentos a tudo.
Aliás, o olhar expressivo de Fassbender é um destaque a parte. Me parece que o ator escolheu manter os olhos sempre abertos, seja para traduzir a potencialidade de atenção do seu personagem, seja para traçar uma característica singular para ele. Talvez as duas opções estejam corretas aqui. Independente disso, o fato de ele nunca piscar, nos deixa, quase sem perceber, atentos à todas as cenas, como se fizéssemos parte daquilo e estivéssemos sendo desafiados a encontrar detalhes que podem passar despercebidos.
É importante observar que “nunca piscar” foi um exagero proposital, pois, o que quis dizer, foi em relação aos momentos em que o assassino está, de fato, analisando alguém ou algum lugar.
Conforme o desenrolar do primeiro ato, vemos o protagonista em planos conjunto, com uma profundidade de campo ampliada, ilustrando a urbanização de Paris, sem mostrar nenhum dos tantos pontos turísticos que a cidade tem a oferecer. Já nos planos médios e primeiros planos, uma profundidade de campo mais reduzida, dando foco ao assassino e aos personagens que o rodeiam. Essa alternância da profundidade de campo é aplicada durante todo o filme.
Ainda no primeiro ato, Fincher escolhe elipses esfumaçadas para demonstrar a morosidade na passagem de tempo. Porém, mais a frente, na narrativa, cortes secos com mudança da luz ambiente criam rimas visuais ao mesmo tempo em que evidenciam e melhoram a dinâmica desta passagem.




A narração do assassino, que sobrepõe suas ações e nos acompanha até o último minuto, não serve apenas como um simples recurso para levar conhecimento ao espectador, mas também, como forma de apresentar a mente do protagonista. Com pouquíssimas exceções, a narração não fala diretamente conosco (Ok, ela fala conosco, mas pensando na diegese, estamos limitados à mente do personagem), assim, abre espaço para ser uma interlocução do assassino consigo mesmo.
A subjetividade mental perante a ele não se limita somente à narração, ou seja, aos seus pensamentos. A alternância do volume da música, ao observarmos a cena pelos seus olhos, também acontece quando ele usa fones nos ouvidos e The Smiths no iPod.
Michael Fassbender externaliza uma característica de introspecção ao seu personagem, sempre usando a voz baixa e no mesmo tom. Por isso, há um grande contraste quando o assassino está fazendo o papel de lixeiro e pede para que um entregador segure a porta de entrada de um prédio para ele. Ao agradecê-lo, pela gentileza, o tom de voz sobe e evidencia a atuação do assassino para com o plano traçado e, consequentemente, da composição de personagem que o ator faz daquele sujeito.
Nos fica muito claro de que o assassino é um sociopata super metódico e que gasta um bom tempo na elaboração dos seus planos. Entretanto, mesmo através de frases repetidas, como “Mantenha-se ao plano”; “Antecipe, não improvise”; “Não confie em ninguém”; tal qual um mantra, a todo momento, ele improvisa e nos mostra que a movimentação de sua vida vem das coisas acontecerem conforme, ou não, o plano.
Por nos apresentar um personagem experiente naquilo que faz, talvez o mantra não sirva, necessariamente, para ser levado à risca, mas sim como simples pensamentos que o ajudem na execução dos planos, eles acontecendo com ou sem improviso.
Um detalhe interessante, que acontece em dois determinados instantes, é que a narração é interrompida no meio de uma frase, sincronizada com alguma ação inesperada, contestando, outra vez, que as falas são equivalentes aos seus pensamentos.
Estes pensamentos não se limitam somente à narração. Quando ele está invadindo a casa do magnata Claybourne, interpretado por Arliss Howard, vozes voltam à sua mente, como se fosse um resumo da história que nos levou até ali.
Sobre o figurino, o próprio assassino revela com humor, de que suas roupas são inspiradas num turista alemão que ele viu uma vez, justificando que ninguém quer interagir com um turista alemão. Entretanto, quase sempre antes de um assassinato, o protagonista troca de roupa para uma totalmente preta.
Apoiada à narração, a construção do personagem, através de suas opiniões e conhecimentos triviais (ou não), nos possibilita antecipar, ainda na cena inicial, que esse agente meticuloso irá concluir mais uma de suas missões com sucesso, atingindo o alvo com precisão. Porém, a quebra de expectativa nos apresenta o assassino errando o alvo pela primeira vez, desencadeando uma série de conflitos na trama a partir de então.
Por consequência, com equilíbrio na intensidade de ação, o diretor nos leva pelo desenvolvimento explorando suas marcas. A variação na estabilidade da câmera, por exemplo, é nítida em vários momentos.
Assim como em outros trabalhos, Fincher caracteriza sua direção se utilizando de expressão através da câmera. Por meio deste método, que ficou famoso em suas mãos, logo no início de carreira, a instabilidade da câmera para traduzir a perturbação mental dos personagens, está presente ao longo desse filme.
É conhecido que, na cena final de Se7en, o diretor alterna entre a câmera tremida, ao mostrar o personagem de Brad Pitt, e a câmera estável, ao mostrar o personagem de Kevin Spacey, revelando o controle mental de cada um naquele momento, após uma grande revelação.
O uso dessa alternância, trouxe ao Fincher uma assinatura própria e que é de fácil reconhecimento na sua forma de dirigir. Embora acredite que este uso não seja exclusivo (e nem ao menos uma criação) do diretor, é notável a aplicação do estilo em momentos específicos da narrativa.
Há detalhes curiosos em como o diretor lida com essa alternância de movimentação. Quando o protagonista entra no hospital e vê a personagem vivida por Sophie Charlotte na cama do hospital, a câmera está em movimento, mesmo que numa proporção menor ao momento anterior em que ele erra o tiro, demonstrando o quanto aquilo o deixa desestabilizado. Porém, assim que o assassino diz ao irmão dela que aquilo nunca mais vai acontecer, a câmera está fixa, demonstrando que, relativo à proteção deles a partir dali, é uma certeza de controle que ele irá assumir, para resolver a situação.
Fincher aplica a “perturbação de câmera” também na cena em que o assassino invade o escritório do seu contato, mostrando que a rotina do advogado e de sua secretária se desestabilizou a partir daquele instante, salientando que o uso dessa linguagem não se restringe ao protagonista ou à personagens específicos.
É interessante observar também que, tanto na morte do jovem taxista, da secretária ou da personagem interpretada por Tilda Swinton, os cortes rápidos, somados às cenas em câmera lenta, trazem um efeito visual curioso por possibilitar que decifremos exatamente o que aconteceu e os movimentos para que aquilo acontecesse.
Apesar dos quadrinhos, de onde o longa é baseado, ser uma publicação de vários anos atrás, o roteiro é ambientado nos dias de hoje. Ainda assim, para efeitos de narrativa, existem variações em relação às particularidades de tecnologia, como, por exemplo, ao evidenciar câmeras de segurança e smartphones num primeiro momento e limitar o assassino na busca de informações através de computadores antigos e registros em papel, posteriormente.
Outro ponto interessante é que se tivéssemos assistido a uma narrativa mais objetiva, poderíamos classificar o protagonista como o clássico psicopata frio e calculista, entretanto, a subjetividade nos permite lhe atribuir humanidade, indo além de detalhes como a instabilidade da câmera (ao mostrar seu mundo em desordem na fuga inicial), mas também em elementos mais evidentes, como ele buscando diminuir a frequência cardíaca, através de seus mantras, ilustrado pelo smartwatch.
O roteiro também estabelece humanidade ao assassino, até mesmo lhe eximindo de maldade, quando mostra sua preocupação em preservar a vida do cachorro de um de seus alvos.
Há alguns pontos que não agradaram tanto e que valem a pena serem discutidos: em poucas vezes, surge a intenção de tirar riso do espectador, seja em comentários sarcásticos de um personagem secundário ou, até mesmo, com uma piada contada do início ao fim, por outro. Nas histórias que Fincher costuma escolher, esse humor ácido é bem característico, contraposto à violência retratada, sendo um traço marcante do diretor. Porém, nesse filme, me pareceram perdidos, pois não foram fortes o sufi ciente para fazer rir e, aparentemente, foram introduzidos para forçar a barra na personalidade de tais secundários, como se fosse preciso (pois não é) destes comentários engraçadinhos para isso.
Outro detalhe desnecessário foi o CGI da tela do smartphone, nos mostrando o que o assassino está pesquisando no Google Maps ou comprando na Amazon. Talvez tenha sido a melhor solução para a montagem, mas não daria para filmar a tela do smartphone? Afinal, isso é feito logo antes, quando o assassino está pesquisando sobre o perfil do magnata.
Confesso que o efeito visual me tirou um pouco da imersão, me trazendo a sensação de “Ah, é! Estou vendo um filme”. Este recurso de espelhar a tela do smartphone na tela do filme, também me remete a uma solução fácil muito utilizada em comédias românticas, traduzindo para o público uma conversa por mensagens entre dois personagens, por exemplo.
Embora tenha se tornado um meme dizer que, nos filmes americanos, a representação do México (ou de países latinos) traga um filtro amarelado para representar o calor, quando o protagonista passa pela República Dominicana, é exatamente o que acontece. Observação de minha amada Priscila, me enchendo de orgulho cinéfilo.
Ainda sobre convenções de mise-en-scène, em todas as cenas externas, onde se mostra a cidade a noite, a narrativa nos revela que, concidentemente, estava chovendo ou nevando minutos antes. Isso porque a iluminação refletida no chão molhado ajuda na ambientação e claridade do cenário onde, certamente, haverá muita sombra.
Sobre jogo de luz e sombra, outro detalhe que acontece ao longo do filme, mesmo que pontualmente, são cenas em que há este contraste, relativo ao protagonista em determinados cenários, destacando sua silhueta e produzindo frames dignos de pintura.
Para finalizar, assim como a estética dos créditos iniciais, ou as transições de “capítulos” que particionam a narrativa, O Assassino pode parecer um “filme para TV”, destes que passavam no canal Cinemax, antes dos streamings existirem, visto que Fincher não pareceu ter grandes pretensões com o longa. É até provável que ele quisesse fazer um trabalho “menor”, ainda que com a competência de sempre, para voltar aos eixos desejados pelos fãs, após 3 anos de Mank, que não conseguiu trazer sua imagem de diretor à tona, mais uma vez, aos holofotes. Talvez, “O Assassino” seja um prenúncio para o próximo trabalho com pretensões maiores. Assim esperamos, certo?
Nota: ⭐⭐⭐⭐⭐
Crítica originalmente escrita em 18/11/23 (isso faz diferença?).
Todas as imagens usadas nessa crítica são reproduções de Netflix (e isso?).